segunda-feira, 6 de abril de 2009

MEMORIAL: um encontro com a leitura e o mundo







Alegria, frio na barriga, expectativa. Essa mistura de sentimentos retratava a minha ansiedade em ir pela primeira vez à escola. Talvez, em decorrência desse fato só ter acontecido aos 6 anos de idade, quando também foi iniciado o meu processo de alfabetização. Antes, porém, já tinha contato com a leitura e a escrita, pois minha mãe mostrava-me as letras, lia as palavras e pequenas histórias, que orgulhosamente dizia ter aprendido depois de adolescente com sua madrasta e uma conhecida e admirada professora da cidade, Dona Eutímia. Quanta admiração ela
nutria pelas pessoas que sabiam ler e escrever as palavras corretamente! Segundo ela, tinham o dom da palavra. Lembro-me sempre do que dizia para todas as filhas: “O futuro de vocês está no estudo e para isso, devem aprender a ler e escrever corretamente para ter uma boa profissão, ser professora, por exemplo”. Parece que essas palavras soaram como profecia! Eis-me aqui!
No primeiro dia de aula, já sabia o nome da professora, dona Didi, um sorriso largo que me transmitia confiança e vontade de permanecer na escola. Eu tinha sede em aprender. Era muito curiosa e perguntava muito, às vezes até demais. Adorava ouvir suas histórias , contadas com tanto prazer.
Assim, nesse período ia acontecendo o meu desvelamento com a leitura e a palavra escrita. Apesar de a professora gostar de contar histórias, esse momento era considerado “brincadeira”, mas no “momento de estudar”, eram os exercícios de identificar vogais e consoantes, relacionar as letras aos nomes de animais e objetos: “a de avião” ; “b de bola; “ m de macaco”; “n de navio”.... Depois vinham as sílabas, em seguida, as palavras, as frases, os textos que deveriam ser estudados como “ lição de casa” que seria “tomada” no outro dia pela professora, para saber como estávamos na “leitura” . Nessa prática, a concepção vivenciada era a da leitura como processo de decodificação de letras, palavras sentenças e ainda, “a leitura avaliativa”, cujo objetivo era avaliar a capacidade de leitura em voz alta. A cada lição tomada, que alegria, já sabia “ler” todas as palavras, expressões e pequenos textos da cartilha! Nesse contexto, era evidenciada também a “leitura autoritária”, a qual pressupõe apenas uma maneira de abordar o texto e uma única interpretação a ser alcançada. Todos copiavam a resposta certa do quadro correspondentes aos exercícios pedidos pela professora .O papel do leitor, portanto, nessa teia da decodificação era o da prática da leitura, quase inconsciente e decodificar passava a ser a ação principal para verificar informações do texto. Essas experiências nortearam todo o meu ensino fundamental I. Na escola, não havia biblioteca e as poucas histórias contadas, eram aquelas que estavam nos livros, ou oriundas das experiências de algumas professoras.Minha mãe sempre à noite, contava as lendas e histórias de mistérios do pequeno vilarejo onde foi criada. O mundo da imaginação e das palavras através da “contação de histórias”, da oralidade entrou primeiro em minha vida, que contribuiu para aguçar minha curiosidade para o universo dos livros.
Ao cursar a 5ª série, descobri a magia da literatura, a verdadeira viagem no mundo dos livros, mergulhei em uma ilha deserta com Robson Crusoé, foi o primeiro livro que li realmente. Recordo-me que a escola onde iniciei o ginásio havia uma enorme biblioteca, com bastantes livros e espaços para ler. Fiquei encantada, extasiada com tantas opções. Não sabia qual livro escolher, mas um em especial me chamou atenção, quando li a sinopse: “ As aventuras de Robson Crusoé”. Na época, não era permitido levar os livros para casa, portanto só podia ler no intervalo. Ao terminar o tempo, marcava a página onde havia parado e ficava torcendo para chegar o outro dia e continuar para ver o que ia acontecer na história. Na hora de dormir criava, sonhava e recriava situações e soluções que poderiam tirar Robson Crusoé daquela ilha. Finalmente, quando terminei de ler o livro, descobri o quão fascinante era a leitura. Daí não parei mais. Lia qualquer livro que encontrasse. Lia livros de aventura, biografias, gibis, Sabrina, letreiros, propagandas. A leitura invadiu a minha vida. Nessa época, vários livros li, solicitados pela escola: Vidas Secas Éramos seis, Capitães de Areia, Polyana Menina e Polyana Moça, Cinco Minutos e a Viúvinha, Iracema... Fazíamos dramatizações e vivenciávamos todas as situações dos personagens. Entretanto, a análise do romance era centrada em quem eram os personagens, suas respectivas características, ambiente, tempo cronológico ou psicológico. Os livros eram utilizados também como pretexto para “Análise gramatical”. As aulas de Língua Portuguesa eram focadas na análise morfológica e na análise sintática. Ficava horas memorizando os termos da oração, a regência dos verbos e a classificação das orações subordinadas. A prática de escrita acontecia de forma esporádica, em situações descontextualizadas, sem levar em conta as condições de produção. Era o texto escrito para o professor corrigir com a finalidade de aplicar uma nota.
Infelizmente no segundo grau( ensino médio) meu contato com a leitura dos livros diminuiu consideravelmente. Não me recordo de um livro trabalhado nessa época. As aulas de Literatura eram centradas no estudo dos períodos literários como forma de memorização e pouca análise que provocasse a compreensão da relação entre o período literário e as concepções de sociedade da época. Comecei a ler Machado de Assis por curiosidade ao ler sobre sua biografia e não instigada pelas aulas de literatura. No curso de Letras, finalmente compreendi o valor da literatura e a sua relação com as concepções de homem e sociedade que circundam esse maravilhoso universo das palavras ditas. Nessa época, “conheci” e me apaixonei por Fernando Pessoa, Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Karl Max. Quantas visões de mundo diferentes, expressas em cada história,em cada poesia, em cada forma de dizer a sua palavra! Lia por necessidade em conhecer mais. Lia por prazer. Hoje, sou uma leitora mais seletiva, em virtude da dinâmica da vida profissional,pouco tempo e muitas atividades, faço leituras mais direcionadas para a minha área de interesse que fundamentam as minhas inquietações e dúvidas. Leio a Bíblia. Leio constantemente livros teóricos que fundamentam as práticas do ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa.
Algumas mudanças já são perceptíveis nas últimas décadas. Entretanto, tais mudanças são pontuais e representam, infelizmente, o fazer e a crença de poucos. Ainda percebe-se muita resistência e práticas voltadas para valorização excessiva dos aspectos gramaticais e da utilização do texto como pretexto, sem levar em consideração a leitura e a escrita como práticas sociais dialógicas que se complementam e promovem o acesso ao conhecimento e a produção dos saberes socialmente construídos. Inevitavelmente nessa perspectiva, os alunos ainda produzem textos com a finalidade apenas de obter a nota do professor, sem levar em conta as condições reais de produção,por isso, descontextualizados das efetivas necessidades em que as circunstâncias e demandas sociais se apresentam. Portanto, para que seja efetivada a produção de textos na escola é necessário que haja um processo de interação na qual o locutor tenha o que dizer, uma razão para dizer e para quem dizer, escolhendo as estratégias adequadas e dessa forma a escola revelar-se um espaço de interação, através da qual o aluno se desvela com sua própria produção de textos, produzindo o seu discurso.Caso esses fatores sejam desconsiderados, a escola estará transformando a escrita em uma atividade artificial, mecânica e com fins puramente pedagógicos.
Na minha trajetória de estudante do ensino básico tive a feliz oportunidade de estar inserida em um contexto que proporcionou o meu agradável encontro com a leitura, o que me fez buscar pessoalmente, o prazer na escrita, aprendizagens significativas, transformar informação em conhecimento e tornar-me uma leitora autônoma, considerando-me sempre uma “ eterna aprendiz” do processo de aperfeiçoamento do registro escrito, sempre “ser em construção” que encontra nos caminhos diversos nas linhas e entrelinhas da leitura sentido para o aprender singular e plural das relações com o mundo e o outro.

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